Indo ao que interessa A Saudade e o que ela nos conta A saudade é o sentimento de um sujeito, de um eu que sofre por não se possuir completamente. Mais que falta de algo, é uma falta de si-mesmo, por habitar fora de si naquilo que ama e deseja. Eduardo Amaral, sj 11 de Fevereiro de 2022 * Indo ao que interessa A Saudade e o que ela nos conta * Partilhar -- (BUTTON) Menu Talvez possa dizer que a saudade é o sentimento existencial mais profundo do ser humano, abarcando-o por completo nas suas dimensões cognitiva, volitiva e afetiva. Este sentimento evoca temporalidade, -- apontando para o futuro, enquanto esperança de posse do que deseja. Numa perspetiva agostiniana, podemos dizer que, na saudade, o sujeito projeta a esperança futura, tornando-a assim presente ao espírito. Vive o gozo passado enquanto carência e o gozo futuro enquanto esperança. -- uma falta de si-mesmo. Além de carregada de intencionalidade (a saudade é sempre saudade de alguém/algo), exige as capacidades e potências intelectivas: tem-se saudade da coisa amada, aquela que se deseja e que não está presente, apenas “enquanto o amado mora na apreensão do amante” (2). Isto é, enquanto a coisa amada é objeto recorrente da memória, recordação e pensamento. Assim, a saudade não pode ser entendida como uma simples paixão, mas antes um estado sentimental que requer a racionalidade destas duas capacidades: da lembrança, ao fazer memória do momento de -- Num mesmo movimento, é também gerado o desejo e a esperança de reaver. Sentindo a falta, o desejo projeta em esperança a plenitude da posse. Neste movimento descobrimos a saudade como o sentimento da contingência, incompletude e imperfeição: a saudade sente-se porque há uma carência ontológica inegável no espírito humano. O bem desejado aparece sempre como necessidade: desejo-o para a minha maior completude; estar na sua posse é ser mais inteiro. É por notar este dinamismo que António Magalhães define a saudade como “sentimento de ser e de não ser: de ser porque nos sentimos sendo na saudade, de não ser, porque não nos sentimos Ser totalmente, em plenitude” (4). Definindo a saudade relativamente ao sujeito que se sente não ser completo, então ela “não é sentimento de um objeto que falta, mas dum eu, dum sujeito que sofre de se não possuir e que só se -- por se referir (apenas) a um objeto exterior, mas por manifestar a carência do próprio ser humano, permitindo o conhecimento da sua estatura ontológica. Compreender isto revela que a saudade não é apenas o sentimento gerado pela esperança da presença do bem amado que falta, mas um sentimento de falta de si-mesmo, como se algo do sujeito -- alheado de si-mesmo. A saudade é o sentimento de um sujeito, de um eu que sofre por não se possuir. Mais que falta de algo, é uma falta de si-mesmo, por habitar fora de si naquilo que ama e deseja. -- vontade, para próximo de mim, enquanto companhia. Devemos notar como a “solidão implica uma viva aspiração de companhia”, uma vez que “o homem não sente a solidão quando está só – o que sente é a saudade, i. é, sente-se acompanhado na solidão, mas em companhia que o deixa insatisfeito. A saudade é o sentimento da experiência espiritual da contingência” (6). A ausência é essa companhia desconfortável. De um modo natural, sem necessidade de raciocínio abstrato, o ser humano conhece-se necessitado duma outra companhia que não a solidão, mas de que a solidão é testemunha. A solidão é sentida enquanto saudade relativamente à companhia em falta, do mesmo modo que dizemos que um lago está seco relativamente à água que o enchia e que, agora, não está lá, ocupando o lugar que até então lhe era natural. Quererá isto dizer que o ser humano, alguma vez, foi inteiro ou está destinado a sê-lo? Se, na saudade, cada um pode reconhecer em si mesmo quer a carência, quer o desejo de algo que o complete, podemos assumir que isso mesmo que deseja, ele o conhece? E, se sim, de que tipo de conhecimento -- Concluindo, talvez uma visão de um racionalismo exacerbado oculte a fonte de conhecimento que são os sentimentos, sobretudo os mais profundos e existenciais. A saudade é um bom exemplo de como um vivência, tantas vezes posta de parte pelo pensamento filosófico racionalista, carregada um peso racional e existencial que ajuda a ler -- B.A.C., 1989), n. C. 28, a.2. (3)António Magalhães SJ, Filosofia da Saudade, 271. (4) Ibid., 275.